
Nas periferias de Cuiabá e no interior de Tangará da Serra, um movimento cultural pulsa fora dos holofotes da grande mídia: as Batalhas de Mcs. Muito mais que uma competição de rimas, esses encontros representam trincheiras criativas, palcos onde juventudes marginalizadas reivindicam voz, espaço e reconhecimento. O hip-hop, no Mato Grosso, resiste como uma expressão potente de identidade e transformação social. Esses encontros, realizados majoritariamente em espaços públicos de bairros periféricos, como praças e terminais, transformam o improviso em uma ferramenta de comunicação popular. A rima, nesse contexto: “é linguagem, é arma e é escudo”.
O hip-hop chegou ao Mato Grosso no fim dos anos 2000, influenciado pelas ondas culturais que atravessaram o Brasil, vindas dos Estados Unidos e de outros grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro. Nos bairros periféricos de Cuiabá, jovens começaram a se encontrar para dançar break, pintar grafites e, principalmente, rimar. Artistas como Sabotage, conhecido por muitos como um dos maiores rappers da história do pais, MC Marechal que além de popularizar o movimento, criou sua própria batalha, a Batalha do Conhecimento onde iniciou Emicida e tantos outros, que usaram a rima como instrumento de crítica social, afirmação identitária e valorização da vivência periférica.
No Mato Grosso, esse processo também se manifesta com potência, apesar da invisibilização por parte das mídias tradicionais e da ausência de políticas públicas culturais efetivas. Com o tempo, as batalhas de freestyle está se consolidando como a principal expressão local do hip-hop, se moldando às especificidades do território mato-grossense. Hoje, são dezenas de batalhas espalhadas por bairros e cidades do estado, criando uma rede vibrante de resistência cultural.
Cuiabá: renascimento das batalhas
As batalhas no Mato-Grosso seguem o mesmo caminho das demais, elas costumam nascer em bairro periféricos, terminais e praças, confirmando a realidade marginalizada que entorna esse movimento. Porem esse surgimento também acontece nas batalhas do “mainstream”, igual a Batalha da Aldeia que acontece numa praça escanteada de Barueri em São Paulo ou a Batalha do Tanque, localizada na praça do Ex-combatentes em São Gonçalo no Rio de Janeiro.
Na capital mato-grossense, o epicentro do movimento são batalhas como a do Tijucal, a do Voluntário e a da Alencastro. A Batalha do Tijucal, atualmente organizada por Davi Machel, é considerada a mais tradicional da cidade que de acordo com os organizadores ela é a batalha mais antiga de Cuiabá. A batalha foi criada pela Mc RD8, moradora do bairro tijucal, teve um período de hiato por conta da Pandemia, voltou em 2023 com Davi liderando essa retomada da batalha com inovações importantes, como o uso de autotune, que rompe com o purismo do rap e conecta a cena local às tendências contemporâneas do trap e do funk. A batalha ressurgiu através da compra de uma caixa de som pelo Mc VT e o Davi, que diz sobre esse retorno:
“não tínhamos apoio nenhum, só nossa vontade de fazer o bem pra nossa periferia”
Davi Machel

@jhosue_ofc A HISTÓRIA DO HIP-HOP [parte 2] breack dance/dança de rua #breackdance #hiphop #historia #dancatiktok
♬ Hip Hop Rnb – LightTown
Atualmente a Batalha do tijucal ocorre de forma mensal, sempre no ultimo dia do mês, Davi afirma ser “mais fácil” dessa forma, mas ele e seu time de organizadores correm desde o dia seguinte que acabou a batalha, para poder trazer o melhor evento possível. Porem nesse período eles tomam frente do “Rimas na base“, projeto criado pela Batalha do Tijucal com parceria entre a Batalha do CPA e a Batalha da Mandiz, junto dos organizadores Farinha e Nagô. Onde busca ir em escolas ensinar crianças e jovens a aprenderem sobre braekdance, rimar, grafitar e ser Dj, disseminando todos elementos do Hip Hop.
Enquanto umas batalhas lutam para se manter de pé, a Tijucal se vê “mais forte do que nunca”. Machel alega que a batalha gastou mais de R$ 20 mil em equipamentos e premiações.
“movimentamos financeiramente mais do que qualquer outra batalha tenha conseguido no estado por meios próprios como patrocinio e apoio”.
No período vigente, a BDT oferece R$ 1 mil em premiação a cada batalha e a melhor bonificação da historia de Mato Grosso, de acordo com Davi, cada vencedor(a) do duelo irá ganhar pacotes de terapia. Para ele ganhar essa premiação é “gigantesca, coisa jamais vista na cena”, afirma com felicidade.
A Batalha do Tijucal hoje movimenta o estado todo, com Mcs vindo de outras cidades para participar, então, Machel tomou a decisão de não fazer a seleção dos Mcs antes, garantindo vaga apenas para os dois últimos finalista do evento e abrindo 14 vagas. Assim, a batalha se torna democrática, abrindo possibilidade de qualquer um que estiver na praça ter a oportunidade de participar para rimar. Indo contra o que fazem as batalhas dos Mainstream que já confirmam seus Mcs antes do evento, e mantendo uma “panela” (onde não existe uma grande rotatividade de quem participa), relata Machel.
Na ponta de Cuiabá capital

Outra frente importante em Cuiaba é a Batalha do Voluntário, localizada no bairro Pedra 90. Hoje segue sendo comandada por Mano Puff. A batalha que foi criada pelas Mc Angel e Mc Kakau, nasceu graças a inauguração da Praça do Voluntario, que surgiu para suprir a necessidade de espaços culturais do bairro. Mano Puff alega:

“queríamos levar essa cultura de rima, do Hip Hop para essas crianças no fundo do nosso bairro”
Mano Puff
Com um público predominantemente jovem, enfrenta desafios constantes como a falta de apoio institucional, preconceito e dificuldades logísticas para manter a regularidade dos encontros. Ele fala sobre a dificuldade do publico em ter acesso a esse tipo de conteúdo cultural que ficam geograficamente distante para esse público do bairro:
“se pra gente é difícil imagina para aquelas crianças que não tem condições pra chegar lá, porque não tem moto, não tem carro, nem dinheiro pra comprar passagem”
Não podemos deixar os artistas daqui morrerem sem seu devido reconhecimento
Mano Puff
Mano Puff se considera um organizador sonhador e conta sobre poder criar o próprio Centro Cultural para atender esse publico se inspirando em Primavera do Leste, considerada por ele uma “cidade modelo em cultura”. Ele afirma que obtendo verba a criação desse centro seria de extrema importância para aquela região, podendo abrir não so para rima, mas também, “poesia, braekdance, ballet, musica e tudo que envolve fazer arte”
Puff, que além de atual organizador, ele é estudante e trabalha como entregador de delivery. E mesmo correndo contra o tempo afirma ter algumas recompensas. Como a Voluntario ter sido a primeira Batalha do estado a ter fechado um duelo apenas com Minas como Mc, ou ver que tem crianças que invés de estar do outro lado da praça, onde fica o movimento de trafico daquela região, elas estão ali “vivendo a cultura do rap”
Reconhecimento e retorno
A Batalha do Voluntario que completa 2 anos de existência em agosto, já está consolidada entre as maiores do estado, sendo referencia de administração entre outros organizadores. No ano passado a Voluntario apresentou um evento de trio em comemoração ao seu aniversario de 1 ano, que ajudou a consolidar ela entre as top da região. Nesse evento tivemos grandes Mcs, tanto do cenário local, quanto do Nacional, nomes como: Cigano e Havel (campeões estaduais mato-grossense) estiveram presente no evento, que tambem contou com os Mcs Neo, MT, Wlbxd e Martzin (campeão nacional de 2024).

Da ponte pra cá: a luta pela sobrevivência

No interior do estado, a cidade de Tangará da Serra abriga uma das mais persistentes manifestações do freestyle mato-grossense: a Batalha da Matriz. A batalha mais antiga do Estado de acordo com mcs e organizadores, ela surgiu inicialmente em 2008 criada pelos mcs Rocky Buster, Cayto mc e Geovan. Atualmente ela é organizada por Zé Léo e outros dois organizadores. Diferente de Cuiaba, a batalha acontece na Praça da Matriz, no centro de Tangará, um espaço simbólico e democrático da cidade. Antes da pausa para a pandemia os duelos ocorriam na Praça da bíblia, também localizada no centro de Tangara da serra.
‘‘Não era nada organizado, apenas juntávamos o pessoal que tava ali e fazia aquela sessão de rima”
Zé Léo
A batalha que estava adormecida desde 2021, após a pausa por conta da Pandemia de Covid 19, voltou em março de 2024, de forma quinzenal. Porém no dia 30 de março, desse ano, aconteceu o ultimo encontro da Batalha da Matriz que anunciou um hiato nas atividades após um ano da sua volta. Os organizadores tiveram a percepção da falta de participação do publico. “o pessoal não sentiu credibilidade, não viu como uma oportunidade de crescer e sim como hobby”, afirma Zé Léo sobre a pausa momentânea da batalha. Ele alega que tinha planos de trazer Mcs de fora, fazer oficinas em escolas com a colaboração dos Mcs, mas a ideia caiu por terra com o fim da batalha.
“A ideia era formar Mcs, compositores, Djs, poder viajar pra fora, participar do estadual, ser reconhecido por isso”, conta sobre suas expectativas com a volta da batalha, mas que hoje se encontra “sem perspectivas”.
Mídia: o Impacto Social e cultural

Cigano, MC e campeão estadual:
“As batalhas mudaram minha vida. Me deram disciplina, coragem e um projeto de futuro.” Essa fala sintetiza o papel das batalhas enquanto terreno fértil para o desenvolvimento artístico, social e até psicológico, onde o improviso se torna ferramenta de empoderamento e construção de identidade.
No entanto, o impacto social dessas batalhas não está isento de contradições e desafios. A escassez de políticas públicas que valorizem e fortaleçam a cultura hip-hop nas periferias do Mato Grosso é um entrave constante. A falta de infraestrutura adequada, espaços seguros, equipamentos de som, apoio financeiro, expõe a fragilidade do movimento, tornando-o dependente quase exclusivamente da dedicação dos próprios jovens e quem decide organizar essas batalhas.
As batalhas de Mcs em Mato Grosso transcendem o mero entretenimento, elas são espaços de resistência, expressão e transformação para jovens das periferias. No entanto, a tragédia que marcou o começo desse ano, o assassinato da MC La Brysa, lança uma sombra sobre essa cena inquieta. La Brysa, uma das poucas mulheres a se destacar no universo do freestyle mato-grossense, foi encontrada morta em janeiro de 2025, após semanas de desaparecimento. Sua trajetória, marcada por conquistas e desafios, foi interrompida de forma brutal, e sua morte expôs as fragilidades da cena cultural local e a negligência da mídia.



Antes de sua morte, La Brysa já enfrentava a falta de reconhecimento e apoio institucional. Sua luta por visibilidade e valorização da cultura hip-hop nas periferias foi uma constante em sua carreira. No entanto, foi somente após sua morte que a mídia mainstream se voltou para sua história, publicando matérias e homenagens que deveriam ter sido feitas em vida. Essa inversão de valores revela uma prática recorrente: a cultura periférica é reconhecida apenas na tragédia, quando deveria ser celebrada em sua potência criativa e transformadora.
No EP “MIMIMI“, do Guri Mc, ele sintetiza essa crítica à mídia e ao sistema das batalhas. Em suas rimas, Guri denuncia a superficialidade e o oportunismo da cobertura midiática, que muitas vezes explora a dor e a marginalização para gerar audiência, sem oferecer apoio real aos artistas e às comunidades envolvidas. A letra questiona o papel da mídia e expõe as contradições de um sistema que se alimenta da miséria alheia sem contribuir para sua superação.
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O futuro da cena underground mato-grossense

O futuro do freestyle e das batalhas de MCs em Mato Grosso oscila entre a esperança e a precariedade. Apesar do entusiasmo e da crescente adesão, sobretudo de jovens e mulheres, o movimento ainda se vê pressionado por um cenário de invisibilidade institucional, preconceitos e dificuldades econômicas. A paralisação de eventos emblemáticos, como a Batalha da Matriz, revela as fragilidades do circuito local, que depende de voluntariado e engajamento comunitário para sobreviver.
Por outro lado, iniciativas inovadoras, como a Batalha do Tijucal, que aposta em formatos originais como batalhas no autotune e projetos para crianças, sinalizam uma reinvenção constante. Essas batalhas buscam não só entreter, mas construir uma rede cultural e social que ultrapasse os limites das praças e dos bairros, conectando-se com movimentos nacionais e até internacionais.
Contudo, é urgente que o poder público e a sociedade civil reconheçam o valor dessas manifestações como patrimônio cultural e como agentes de transformação social. Tirar leis que estão no papel, como a L14835 art 2° parágrafo IV, onde garante: direitos culturais, exercício das garantias jurídicas de direito autoral, de criação, de produção, de distribuição, de difusão, de registro, de fruição e de consumo, no que couber em cada caso, de bens e serviços vinculados às linguagens artísticas, aos conhecimentos, às tradições, à história, à memória coletiva, à língua, a saberes e fazeres e ao patrimônio cultural, resguardadas a dignidade da pessoa humana e a plena liberdade de expressão da atividade intelectual e artística, observados os direitos e as garantias fundamentais expressos na Constituição Federal.
A cultura hip-hop mato-grossense, assim como a periferia que a alimenta, não pode continuar à margem das políticas culturais e das narrativas midiáticas oficiais. O hip-hop pulsa forte no coração do Brasil, bordando novos mapas culturais que contestam o eixo tradicional Rio-São Paulo, e sua cena underground é um território de resistência, afirmação e futuro. Ignorá-la seria não apenas perder uma expressão artística, mas negar a existência e o protagonismo dos jovens que a constroem dia após dia.
Produção Kaick Klaivert | Edição/Revisão: Nicolli Aguiar