“A TERRA-QUINTAL”
O dia amanhece devagar nas pequenas propriedades rurais brasileiras. Enquanto o sol ainda se arrasta pelo horizonte, as mãos já colhem mandioca, cuidam das galinhas e enchem cestos de feijão. São gestos ancestrais que movimentam um país dentro do país – um Brasil de 3,9 milhões de propriedades familiares produzem a maior parte do que chega às mesas brasileiras.
O cheiro de café coado pela manhã, o feijão cozido bem temperado no almoço, em uma grande parte, só existe por conta dessas pequenas, um setor fundamental para a economia e a segurança alimentar brasileira. Segundo o último Censo Agropecuário de 2017, esse modelo de produção ocupa 80,9 milhões de hectares em todo o país, o que corresponde a 23% da área total dos estabelecimentos agropecuários. Esse percentual se distribui em mais de 5 milhões de propriedades rurais, sendo que 77% delas são classificadas como agricultura familiar. No aspecto social, a agricultura familiar desempenha papel crucial na geração de empregos no campo. O setor emprega mais de 10 milhões de trabalhadores, representando 67% do total de ocupados na agropecuária. Além disso, é responsável pela renda de 40% da população economicamente ativa no meio rural.
A agricultura familiar está presente em todos os biomas brasileiros e apresenta características que a tornam única. Entre elas destacam-se: o uso de insumos locais, a predominância da mão de obra familiar, a preservação de materiais genéticos tradicionais e a participação em circuitos curtos de comercialização. Essas particularidades aproximam o setor dos princípios agroecológicos e reforçam sua capacidade de fornecer importantes serviços ecossistêmicos.
Esses serviços ambientais incluem a produção de água, a manutenção de polinizadores naturais, a conservação do solo, o controle da erosão e o aumento da biodiversidade nos cultivos. Tais benefícios ambientais, somados à sua importância econômica e social, levaram a Organização das Nações Unidas (ONU) a declarar, em 2019, a Década da Agricultura Familiar (2019-2028). Implementada pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e pelo FIDA (Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola), essa iniciativa global tem como objetivo fortalecer políticas públicas para o setor, considerando suas múltiplas dimensões: econômica, social e ambiental. O reconhecimento internacional da agricultura familiar se deve à sua comprovada capacidade de garantir segurança alimentar, gerar emprego e renda, preservar a agrobiodiversidade, proteger ecossistemas naturais e contribuir para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.
Dentre esses dados existe a dona Eliana, uma mulher de quarenta e três anos que nasceu e cresceu na agricultura familiar, que aprendeu como manusear a terra com sua mãe e que agora repassa todo esse aprendizado para seu filho, que acompanha com as atividades rurais.
“PORQUE TU ÉS TERRA, E À TERRA VOLTARÁ”
Meus colegas do projeto de extensão “Aviários Móveis na Avicultura Familiar: acompanhamento e orientações” – onde leva a tecnologia social que é o aviário móvel para os agricultores, a qual faço parte, já falavam dela antes que eu pudesse conhecê-la. Sempre diziam que era receptiva, que gostava de preparar um café, um almoço, de conversar. Falavam que ela era ativa, participava de tudo, tomava a frente quando era preciso. E tudo isso se confirmou assim que pus os pés em sua casa.

Dona Eliana, junto com seu marido Valdeci, recebe a equipe do projeto com almoço. Créditos: Isabela Vieira.
#Paratodosver Há cinco pessoas sentadas em cadeiras em volta de uma mesa, duas mulheres e três homens, onde tem pratos e panelas servida de comida.
Não era a primeira vez que eu fazia uma visita técnica às propriedades de um agricultor por conta do projeto, mas isso não significava que eu já estivesse acostumada com as paisagens e a realidade do campo. Como uma jovem com vivências do litoral paulista, que veio para Tangará da Serra (MT) para cursar Jornalismo, em cada visita eu via e ouvia algo sob uma perspectiva totalmente diferente da realidade a que estava habituada, tornando tudo uma experiência única. No caminho até as propriedades, observava pela janela do carro as diferenças entre as áreas utilizadas por uma grande empresa, onde a paisagem geralmente era de terra revolvida ou de monocultura de milho ou cana-de-açúcar, uma vista sem cor que transmitia uma sensação de vazio, e as áreas da agricultura familiar, com o cultivo diversificado e o verde mais vibrante, um tom diferente do que eu já havia visto.
Assim que cheguei à propriedade de dona Eliana, fui recebida com um bolo ainda morno, café fresco e um sorriso que parecia já me conhecer. Ela me ofereceu também frutas tiradas do pé, cultivadas por ela mesma, com as mãos que há anos se entregam à terra. Aquela cena me marcou. Era a minha primeira visita técnica no assentamento São José, em Nova Olímpia, e ali estava eu, sentada à mesa de uma mulher que, sem cerimônia, me incluía em sua rotina com a generosidade de quem entende que partilhar é parte da vida no campo.
Dona Eliana Aparecida Costa é mãe de três filhos: Claysen, a mais velha; Cliver, o do meio; e Kennedy, o caçula, de apenas treze anos. É casada com Valdeci, seu companheiro também na roça e na vida. Quando a conheci, ela já fazia parte do projeto de extensão “Aviários Móveis na Avicultura Familiar: acompanhamento e orientações”. Era, inclusive, uma das poucas agricultoras que, além de manter os aviários que projeto construiu em seu sítio, ela mesma construiu outros de acordo com a sua necessidade, um compromisso que ela assumiu desde o início e do qual nunca se afastou. Ela não apenas cuida das galinhas no aviário móvel; ela pensa em soluções, sugere melhorias, propõe novos caminhos. Durante nossas conversas, vai explicando com paciência o que mudou na criação desde a última visita, e comenta com brilho nos olhos como o Kennedy ajuda na lida, junto do pai.

Dona Eliana mostra o funcionamento do aviário móvel em sua propriedade. Créditos: Isabela Vieira.
#Paratodosver Uma mulher ao lado de uma estrutura pequena, que é o aviaria móvel, onde tem sete galinhas dentro, num local aberto com grama alta.
Em uma dessas visitas, reparei numa peça de crochê no banheiro. Perguntei, curiosa, se tinha sido ela quem fez. E foi. Contou que aprendeu a fazer crochê sozinha, ainda menina, com doze anos. Vendeu por um bom tempo suas peças, até que as dores nas mãos, resultado dos longos anos de trabalho na lavoura, a obrigaram a parar. Dona Eliana cresceu na zona rural de Denise-MT. Sua família foi uma das pioneiras da cidade, plantava arroz, melancia, cenoura. A vida inteira foi ligada ao cultivo, ao cheiro da terra molhada, à dureza e à beleza do que nasce com o tempo.
Hoje, a renda da família vem daquilo que ela mesma produz e transforma: como o colorau, que vende, com cheiro forte e cor viva. Mas há muito mais. Ela cultiva laranja, limão, mandioquinha, batata-doce, e mantém um jardim de ervas medicinais que ela mesma sabe usar, como quem herdou um conhecimento antigo, passado de geração em geração.
Fora da propriedade, dona Eliana também se movimenta. Participa de uma associação de mulheres que organiza feiras como a “Artesanato Salva Vidas”, além de ser ativa nas atividades da igreja. Onde há espaço para colaborar, lá está ela.
Entre um gole de café e uma história da infância, entre uma explicação sobre o aviário e uma receita de remédio caseiro, dona Eliana me ensinou o que talvez nenhum projeto de extensão ensina: que tecnologia social não se sustenta sem afeto, sem vínculo, sem a presença viva de quem acredita. E ela acredita. Acredita tanto que nos contagia.
Dona Eliana falando sobre o aviário móvel em sua propriedade, durante uma oficina sobre aviários móveis, onde estavam presentes alunos e agricultores da região.
Texto: Isabela Vieira.
Fotografia: Isabela Vieira.
Artes interativas: Heloisa Costa; Sara Santos.