Reportagem reconstrói a escalada que levou ao 8 de janeiro e mostra como o caso de uma manifestante virou peça-chave no jogo de perdão político que pode alcançar até Bolsonaro.
A mulher do batom vermelho
Debora Rodrigues após pichar a estatua da Justiça, em frente ao STF. Foto: Gabriela Biló #ParaTodosVerem Uma mulher, envolta em uma bandeira do Brasil, está sentada na base da estatua da Justiça, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Ela tem o rosto e a mão sujos de tinta vermelha. Atrás dela, na estátua, está pichado em tinta vermelha: “Perdeu, mané”. Ao fundo, há outras pessoas com roupas e bonés verde-amarelos, típicos de manifestações pró-Bolsonaro.
A imagem de Débora Rodrigues dos Santos, ajoelhada diante da estátua da Justiça com um batom vermelho em punho, rapidamente se tornou um dos ícones do 8 de janeiro de 2023. A cena, em que ela escreve “perdeu, mané”, frase direcionada ao ministro Alexandre de Moraes, rodou o país como registro do embate simbólico que marcou aquela tarde. Mais do que reconstituir os episódios que antecederam e sucederam a invasão às sedes dos Três Poderes, esta reportagem examina como o caso de Débora ilustra a disputa narrativa em torno da anistia: um movimento que tenta ressignificar os réus do 8/1, apresentando-os como vítimas de um Judiciário ditador. A análise parte de documentos judiciais, registros audiovisuais e discursos parlamentares para entender como essa simbologia é construída e propagada.
Unindo a tensão entre o ato simbólico e o crime real, o caso de Débora teve grande repercussão, ultrapassando as barreiras do processo legal. Condenada a 17 anos de prisão por crimes como associação criminosa armada, tentativa de golpe de Estado e dano qualificado, ela se transformou na personagem principal de uma nova história: a de que os réus do 08/01 estariam sendo vítimas de um sistema cruel, que pune os “fracos” enquanto protege os poderosos.
Seu rosto e sua história começaram a circular em vídeos, discursos parlamentares e postagens nas redes sociais. Não raro, Débora é apresentada como uma mulher simples, sem antecedentes, movida por impulso. Transformando sua imagem em símbolo da luta pela anistia, setores bolsonaristas tentam criar um elo emocional com a população, e, paralelamente, suavizar as acusações.
Um domingo para esquecer… ou recordar?
No domingo, 8 de janeiro de 2023, Brasília viu suas instituições democráticas atacadas, todas de uma vez. Milhares de manifestantes invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. As cenas de destruição rodaram o mundo: cadeiras reviradas, obras de arte danificadas, papéis rasgados e a sensação de que o país havia ultrapassado um limite perigoso.
Os invasores pediam intervenção militar e não aceitavam o resultado das eleições de 2022, que deram a vitória a Lula. Nas semanas anteriores, já havia acampamentos em frente a quartéis do Exército em vários estados. Nas redes sociais, a movimentação era intensa, com convocações para “tomar o poder” e “salvar o Brasil”.
A resposta do Estado foi implacável. Centenas de prisões ocorreram nas horas seguintes, e o Supremo Tribunal Federal passou a julgar os envolvidos, com base em acusações como tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. A relatoria ficou com o ministro Alexandre de Moraes, que também passou a ser alvo de críticas de parlamentares e militantes bolsonaristas.
Já se passaram mais de dois anos, e o Brasil ainda enfrenta as consequências daquele dia. Enquanto avança a responsabilização judicial de centenas de pessoas, o Congresso Nacional debate uma proposta de anistia, que pode beneficiar desde figuras como Débora até articuladores políticos bem mais influentes. Essa data, que para muitos deveria ser lembrada como um alerta contra os perigos do extremismo, também passou a ser recontada por seus apoiadores como o dia da “injustiça contra o povo”.
Como chegamos ao 8 de janeiro: uma cronologia da escalada golpista
Mártires e manipuladores
A transformação de figuras como Débora em personagens centrais do debate público atende a uma lógica comunicacional precisa: o foco no drama pessoal desloca o olhar do coletivo para o individual, do político para o emocional. Essa estratégia serve para amortecer a gravidade dos eventos do 8 de janeiro, ao mesmo tempo em que ressignifica os culpados como vítimas de um sistema implacável. A empatia gerada para Débora serve não apenas para mobilizar a opinião pública, mas também para diluir a responsabilidade dos articuladores políticos dos atos. Essa estratégia discursiva cria um efeito de espelho: enquanto a imagem da “cidadã comum” é exaltada, figuras como o ex-presidente Jair Bolsonaro são gradualmente removidas da cena como se não tivessem relação direta com o ocorrido.
Essa simbologia ganha força nas redes sociais, onde conteúdos emocionais circulam de forma massiva. Um dos vídeos compartilhados nos últimos dias nas redes bolsonaristas, mostra a estátua da Justiça que se levanta e caminha pelas ruas enquanto as pessoas a observam. Em seguida, aparece uma repórter e o ministro Alexandre de Moraes assistindo à cena pela TV. A estátua levanta uma placa com os dizeres “Somos todos Débora” e, ao final, retorna ao seu lugar segurando um batom. O vídeo usa essa metáfora para reforçar a ideia de injustiça e solidariedade à ré, sem mostrar diretamente os fatos do 8 de janeiro ou mencionar os atos violentos.
Esse tipo de vídeo viral, que se espalha por WhatsApp, Instagram e TikTok, ajuda a construir um discurso emocional em torno da anistia. A narrativa de “cidadãos comuns sendo perseguidos” ganha corpo também em discursos parlamentares, onde as histórias pessoais são usadas como justificativa para projetos que visam não só libertar manifestantes, mas também blindar lideranças políticas que estimularam a crise.
No entanto, investigações em curso indicam que aliados próximos ao ex-presidente, como Anderson Torres, General Heleno, Militares da reserva e da ativa, grupos e milícias digitais, deputados e senadores de sua base e ele próprio, atuaram na construção da atmosfera de deslegitimação institucional que levou ao 8 de janeiro. A manipulação emocional dos “inocentes úteis” cumpre, nesse sentido, um papel tático: gerar comoção para proteger a retaguarda.
Anistia: a nova batalha ideológica
A proposta de anistiar os envolvidos nos atos antidemocráticos, que nada mais é do que perdoar ou impedir punições para pessoas envolvidas em certos crimes, como se apagasse oficialmente as responsabilidades desses atos, tem mobilizado não apenas setores do Congresso, mas também grupos organizados nas redes sociais, lideranças religiosas e movimentos conservadores. Em todos esses espaços, a narrativa do “exagero punitivo” e da “perseguição política” ganha força.
Mas a defesa da anistia não se resume à proteção de manifestantes comuns. Nos bastidores, ela é vista por analistas e integrantes do Judiciário como uma tentativa de criar um amortecedor jurídico e simbólico para figuras mais influentes, entre elas o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, que desde março de 2024, Bolsonaro é alvo de inquéritos no Supremo Tribunal Federal que investigam sua suposta participação na incitação aos atos antidemocráticos. Segundo a Polícia Federal, há indícios de que ele participou de reuniões com aliados militares e civis para discutir cenários de ruptura institucional.
Em fevereiro de 2025, a PF indiciou Bolsonaro no inquérito das joias e também no que apura a minuta golpista encontrada na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça. Ambos os casos são considerados parte do mesmo ambiente que culminou no 8 de janeiro: um contexto de desinformação, desacato às instituições e incentivo a soluções autoritárias.
Diante da pressão política por anistia, membros do Judiciário têm se posicionado. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, foi enfático ao comentar a proposta durante entrevista ao Jornal O Globo, em abril de 2025:
“Não acho que seja o caso de anistia, porque anistia significa perdão. E o que aconteceu é imperdoável. Mas redimensionar a extensão das penas, se o Congresso entender por bem, está dentro da sua competência.”
A fala de Barroso expôs a tensão entre os Poderes e deixou claro que, para a Suprema Corte, os ataques do 8 de janeiro não devem ser tratados como simples manifestações políticas. O julgamento histórico ainda está em curso — e o perdão, segundo o STF, pode ter um preço alto para a democracia.
A tropa na Câmara: Mato Grosso e a ofensiva pela anistia
A anistia aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro não é apenas uma causa difusa nas redes ou uma pauta isolada de manifestantes arrependidos. Na Câmara dos Deputados, ela se tornou uma bandeira política articulada, e a bancada federal de Mato Grosso tem atuado como um dos vetores ativos dessa ofensiva.
O movimento ganhou tração em março de 2024, quando um grupo de deputados aliados ao ex-presidente Jair Bolsonaro apresentou um requerimento para votar em regime de urgência o Projeto de Lei 2858/2022, apresentado em novembro de 2022, antes dos atos de 8 de janeiro, pelo então deputado Major Vitor Hugo (PL-GO). O projeto propõe anistia ampla a condenados e investigados por atos antidemocráticos após o dia 30 de outubro de 2022, dia do segundo turno das eleições de 22. Embora o texto não cite nomes, seus efeitos práticos se estenderam de figuras anônimas como Débora Rodrigues dos Santos aos principais articuladores políticos, incluindo militares, ex-ministros e o próprio Bolsonaro.
Dos oito deputados federais por Mato Grosso, a maioria demonstrou alinhamento com a proposta. Nomes como Abílio Brunini (PL), deputado federal à época, e Coronel Assis (União Brasil) estiveram entre os mais engajados na defesa da urgência do projeto. Abílio, inclusive, tem repetido em entrevistas e redes sociais que “o 8 de janeiro foi um erro coletivo, não um crime arquitetado”. Essa relativização serve como base moral para a anistia, mas também como escudo para blindar a cúpula do bolsonarismo.
A estratégia é clara: ao empurrar a votação em regime de urgência, os parlamentares tentam acelerar a tramitação, driblando o debate público mais profundo e reduzindo a chance de que o projeto seja travado em comissões temáticas. Trata-se de um jogo de força: quanto mais o tempo passa, mais consolidam-se as investigações que implicam lideranças políticas de alta patente, e mais difícil se torna argumentar por uma anistia que ignore o comando.
A relação desses deputados com Jair Bolsonaro segue central na equação. Mesmo sem cargo público, o ex-presidente segue como figura de influência decisiva sobre suas bases. Suas falas sobre “perseguição política” e “prisões injustas” são ecoadas por parlamentares de Mato Grosso em discursos, lives e projetos. Nos bastidores, há articulações para transformar a anistia em uma “pauta do povo”, numa tentativa de capturar o discurso da reconciliação nacional e ressignificar o 8 de janeiro como um desvio menor, não como a expressão de um projeto autoritário.
Mas o risco institucional permanece. Juristas ouvidos pelo Supremo Tribunal Federal e relatórios como o da CPMI do 8 de janeiro alertam que uma anistia sem critérios claros pode configurar impunidade deliberada e representar risco direto à democracia, ao consolidar a ideia de que crimes políticos podem ser esquecidos por conveniência parlamentar.
Enquanto isso, parte da bancada de Mato Grosso insiste em inverter os polos: colocam os réus como vítimas e tratam o sistema judicial como algo a ser domado, e não como pilar democrático. A tentativa de urgência é mais do que um rito: é uma janela de oportunidade para apagar responsabilidades antes que a história as registre com clareza.
Pesquisa realizada pela Quest, encomendada pela Genial Investimentos. Ouviu 2.004 pessoas, entre 27 e 31/03. O nível de confiabilidade é de 95% , e a margem de erro, é de 2 pontos.
Reportagem reconstrói a escalada que levou ao 8 de janeiro e mostra como o caso de uma manifestante virou peça-chave no jogo de perdão político que pode alcançar até Bolsonaro.